terça-feira, 14 de abril de 2009

MPHYANGA

Conforme a promessa, e ainda ligado ao lançamento simultâneo no próximo dia 15 de Maio na Beira dos Livros Mphyanga e Nzerubawiri ( edição revista e aumentada) de José Pampalk, recebi do autor o texto que segue e que publico tal e qual. Boa Leitura. Preste-se atenção ao conto, de uma beleza e riqueza notáveis.


“... O presente livro ‘Mphyanga?’ pretende reanimar esta capacidade corajosa de perguntar e de aceitar ser perguntado. Se não houvesse mais sessões ou artistas a ‘cantar contos’, então, tornava-se urgente reinventar este modo de contar contos. Os contos deste livro (...) exprimem, por símbolos e metáforas, as perguntas importantes, que nos fazem muita falta, hoje! Certamente, jornalistas competentes e independentes assumem, hoje, um papel importantíssimo, mas, perdendo-se a tal literatura oral e viva, perde-se com ela a capacidade de pronunciar e entender perguntas discretas, formuladas sob imagens e fábulas, mas pertinentes; perde-se também o necessário humor que sabe aceitar críticas.

Diezm que, no Malawi, os lideres e os que têm um conceito deformado da chefia ficam demasiado sensíveis e resistentes à crítica, aplicando, especialmente aos chefes o provérbio geral: uma batata doce curva não se deixa endireitar! (Nzeru n.406, modificado em Chewa assim Nfumu ndi mbatata, ukangola wathyola). O relatório final dum estudo observou em Moçambique uma tendência semelhante de dirigentes interessados “de que fosse veiculado uma informação que não revelasse a realidade, que fosse parcelar e reflectisse apenas as suas próprias leituras da realidade” (Sociedades Pós-Guerra 1997:30). Sendo entâo, a literatura oral e a comunicação social instrumentos da reconciliação nacional e de desenvolvimento comunitário, deve-se investir mais e ao mesmo tempo na capacitação jornalística e também na literatura oral, recolher, compilar, estudar colecções de contos, não para fechá-las em arquivos e assim esquivar-se ao desafio, mas para expôr e ir ao fundo destas questões expressas, desde o conto do timba no prólogo (c.1) até ao da cadela preta no epílogo (c.55).

Noutros contos simbolizam vários animais as duas possíveis tomadas de posição do coração, dum cidadão, chefe ou marido. Nem sempre ambas as alternativas são explicitamente elaboradas. Uns limitam- se a denunciar somente a escolha a mais destructiva, deixando aos ouvintes a pensar noutra escolha mais constructiva. Mas nestes dois contos a estrutura e a mensagem são muito claras: O do pássaro timba coloca-nos a todos diante da questão primordial “É meu, ou pertence a algum outro?” Sua reacção “é meu (Mphyanga)” desmáscara a atitude epidémica, mundialmente mais grave, e sua interpelação é válida e crucial para cada país, organisação, aldeia ou casal....

(o primeiro conto, página 28-30)

1. O Passarinho Timba

(é meu ou pertence a todos?)

Um dia o Leão, rei dos animais, encontrou o muito pequeno passarinho Timba a comer uma larva. Então, o Leão perguntou-lhe:

– Ora essa, porque estás a comer estas larvas pequenas; não gostarias mais de outra comida boa, como milho ou gafanhotos, grilos e outra bicharada pequena?

E, logo, o Timba respondeu:

– Sim gostaria, meu senhor, mas como posso?!... Este meu bico e esta minha pouca força não chegam!...

– Gostarias mais ser uma galinha do mato? – perguntou-lhe o Leão.

– Sim, gostaria tanto! – respondeu logo o Timba.

O Leão, então, ordenou:

– Doravante, serás uma galinha!

E o Timba, realmente, transformou-se numa galinha, começando, com muita satisfa­ção, a comer também milho e gafanhotos, grilos, caranguejos e outros bichos pequenos.

Passados uns tempos, encontrou-se de novo com o rei Leão, que não tardou a perguntar-lhe:

– Então, Nfumu Galinha! Estás muito contente, não é?

– Oh, meu rei, está a querer saber, de novo, como estou bem?! Sim, os grilos, gafanhotos, caranguejos, agora, são para mim uma brincadeira! Mas há outros animais que eu ainda não consigo comer: os outros pássaros, como as rolas e os pombos, por exemplo. Se eu fosse uma raposa, então, não fariam mais troça de mim!

– Está bem, transformo-te numa raposa!

E o Timba tornou-se raposa, de verdade. E nenhuma ave, galinha, rola, galinha do mato ousava mais passar perto dele. O Timba-raposa, contente, encontrou-se de novo com o Leão que quis saber:

– Então, raposa, agora estás feliz e consegues apanhar as tuas aves?

– Ó meu rei, agora sou eu o salteador das galinhas, patos do rio, patinhos e outros. Somente ainda não consigo apanhar cabritos do mato, antílopes anyasa ou estes roedores nsenzi. E, quando observo como o felino njuzi os apanha com facilidade, então sinto inveja por não poder fazer o mesmo.

Assim confessou o Timba-raposa e o Leão disse-lhe:

– Se quiseres, sejas, então, também um felino njuzi! – concedeu-lhe o rei dos animais.

Assim, foi o Timba transformado num njuzi, um felino somente um pouco mais pequeno do que o leopardo. Então, todos aqueles animais andavam de rastos: cabritos, antílopes, nsenzi... Passados três, quatro meses, cruzou-se o Timba-njuzi, de novo, com o seu rei:

– E agora, como estás nfumu Njuzi?

– Ó rei, nem te consigo contar como estou divertido com as minhas caças. O que sinto falta de poder apanhar é os mesmos animais gordos que o leopardo caça, como antílopes ntsengo, gazelas mbawalas, javalis...

O Leão só teve de lhe cortar palavras e desejos, e consentiu:

– Serás leopardo!

Logo, naquele momento, transformou-se o Timba num leopardo. Antílopes ntsengo, gazelas mbawalas, javalis, não tiveram mais descanso perto dele. O Timba-leopardo gozou durante dois, três anos, até deparar com o seu rei:

Nfumu Leopardo, como anda isso com as gazelas?

Mambo Leão, pode ver o meu corpo engrossado! Toda a família das gazelas já não gozam mais comigo. Quem ainda faz pouco de mim, são os antílopes grandes ílandes e ndondonga ou os búfalos. Se conseguisse apanhá-los também a eles, nunca mais diria nada.

– Escuta bem, – respondeu-lhe o Leão, – se quiseres ser um leão devemos combinar uma só coisa. A única condição será a seguinte: quando tu rugires, nunca deves rugir “Mphyanga! é meu, é meu!” O teu rugir deve ser o seguinte: “Mphya mwanacinthu! é dum dono, é dum dono!” Ouviste?

– Oh rei, só isso? Aceito esta condição e prometo fazer como me mandas! – respondeu o Timba-leopardo.

– Então, transforma-te num leão! – concedeu-lhe o rei dos animais, e o Timba passou a ser também um leão.

Assim, passaram anos, até o Timba-leão se enfrentar com um búfalo, um macho grande e temível. Matou-o. Parou em cima da sua presa e começou a rugir:

Mphyanga-a-a! Mphyanga-a-a! É meu-u-u, é meu-u-u!

O Leão rei ouviu este rugido e seguiu-o. Quando o Timba-leão notou o rei a aproximar-se ficou assustado e procurou palavras evasivas:

– Meu senhor, matei esta caça e, por isso, chamei-vos para a comerdes...

– Mas, porque rugiste tu hoje assim: “É meu, é meu”?

O rei Leão perguntou e o Timba-leão não sabia que resposta dar. O rei ameaçou, então, transformá-lo de novo naquele animal que o Timba era inicialmente. O Timba-leão procurou desculpar-se, mas o rei foi-lhe lançando uma pergunta a seguir a outra:

– Antes de ser leão, quem eras tu? – perguntou o rei.

– Eu era leopardo, – admitiu o Timba.

– Passas a ser leopardo! E come! – retorquiu o Leão rei e o Timba foi de novo leopardo.

– Antes de ser leopardo, quem eras tu? – continuou o Leão a perguntar.

– Eu era um felino njuzi! – admitiu o Timba. E o Leão mandou:

– Voltas a ser um njuzi, come lá a tua presa! E quem eras tu, antes?

– Era raposa!

– Volta a ser raposa e come depressa, senão ficas sem comer. E, antes, quem eras tu?

– Era galinha, respondeu chorando o Timba.

– És galinha de novo.

Acabado de ser rebaixado ao estado de galinha, Timba ouviu já a última pergunta:

– Quem eras tu, antes?

– Era um passarinho timba!

– És um timba! E comerás as larvas quando o teu búfalo tiver apodrecido!

Aqui acaba o meu conto. Quem sabe o seu, que o conte por sua vez.